Muito se fala sobre o Brasil vir a ser uma segunda Venezuela, e por mais que aqueles que costumam cotidianamente falar sobre esse assunto habitarem uma realidade paralela, essa afirmação tem fortes lastros de realidade, mas por meios e motivos muito diferentes do que eles imaginam.
Em um estudo detalhado, os professores de Harvard (não eles não são comunistas!) Levitsky e Zibblat [1] mostram que, em países com democracias desestabilizadas, as Cortes Constitucionais, representantes máximas da autonomia do Direito, foram as primeiras instituições a serem atacadas. Os professores demonstram como a Hungria em meados de 2018, criou um sistema judicial paralelo, que não passa pelo controle da suprema corte e que é controlado pelo presidente, que tem o poder de decidir questões sensíveis, como crimes de corrupção, leis eleitorais, bem como casos envolvendo direito à manifestação. Atualmente, o presidente da Hungria, Victor Orbán [2], está livre para fazer tudo o que tem feito, como fechar universidades, perseguir minorias como os LGBTQIA+, opositores, jornalistas e todos que o desafiam.
Os autores também nos mostram que governos incapazes de afastar juízes independentes podem contorná-los através de mudanças na composição da corte. Na Polônia, houve uma reforma que tentou forçar mais de um terço dos juízes da Suprema Corte a se aposentarem. Essa alteração só foi barrada depois de fortes manifestações e ameaças da União Europeia. O Partido da “Lei e da Justiça”, governante, teve várias de suas iniciativas bloqueadas pelo Tribunal Constitucional entre 2005 e 2007. Mas quando este partido retornou ao poder, em 2015, foram tomadas medidas para evitar perdas semelhantes no futuro. Na época, havia duas vagas abertas no Tribunal Constitucional de quinze membros, também existiam três magistrados já indicados e aprovados pelo Parlamento, mas que ainda precisavam prestar um juramento. Numa manobra inconstitucional, o novo governo do “Lei e Justiça” se recusou a receber o juramento dos três magistrados e, em vez disso, impôs cinco novos juízes. Foi assim, que junto com boa margem de apoio no congresso polonês, foi aprovada uma lei exigindo que todas as decisões obrigatórias do Tribunal Constitucional tivessem maioria de dois terços. Na prática, isso deu aos aliados do governo um poder de veto dentro do tribunal, limitando a capacidade do órgão de servir como um controle independente do poder governamental.
Esses ataques à autonomia do Direito não acontecem somente em governos de extrema direita, governos autoritários de esquerda também acabam com a autonomia do Direito e o colocam a serviço da política. Vamos pegar como exemplo o que aconteceu na tão mencionada Venezuela: em 2004, Hugo Chávez, para ter controle sobre as decisões da Suprema Corte, conseguiu concretizar algo muito parecido com o quê vêm propondo o presidente Jair Bolsonaro. Chávez, o maior culpado da situação atual em que a Venezuela se encontra, conseguiu ter amplo poder sobre a suprema corte por meio de duas manobras políticas que atropelaram a legalidade e a autonomia do Direito.
A primeira manobra de Chávez teve começo em 1999, quando o governo convocou eleições para uma Assembleia Constituinte que, violando uma decisão anterior da Suprema Corte, concedeu a si mesmo o direito de dissolver todas as demais instituições do Estado, inclusive a Suprema Corte.
Diante dos “tanques” do tenente-coronel Chávez a caneta dos juízes pouco pôde fazer, e temendo pela própria sobrevivência e pela liberdade de seus integrantes, a Suprema Corte aquiesceu e decretou que a iniciativa do executivo federal era constitucional. Naquele momento, a ministra Cecilia Sosa, presidente do órgão, renunciou, declarando que a corte tinha “cometido suicídio para evitar ser assassinada”. “Mas o resultado é o mesmo. Ela está morta.” Dois meses depois, a Suprema Corte foi dissolvida e substituída por um novo Tribunal Supremo de Justiça.
Contudo, nem essa medida foi capaz de garantir um Judiciário dócil, pois mesmo tendo sido indicados por Chávez uma boa parcela dos novos ministros possuíam alguma decência e um certo compromisso com o Direito e com a dignidade, de modo que, em 2003, em plena madrugada o governo Chávez aumentou o número de ministros da Suprema Corte de 20 para 32 e preencheu as novas cadeiras com lealistas “revolucionários”, isso produziu o efeito desejado. Além de povoar a corte com aliados, Chávez conseguiu também que a nova lei permitisse o afastamento de outros ministros por decisão do governo em casos em que suas condutas ferissem “o interesse nacional”. Na prática, a regra se tornou um salvo-conduto para que Chávez e, posteriormente, seu sucessor Nicolás Maduro tirassem juízes que tomassem medidas que os desagradassem. Ao longo dos nove anos seguintes, nem sequer uma única decisão do Tribunal Supremo foi contra o governo [3]. Aqui no Brasil, onde o presidente adora afirmar que o país não será uma nova Venezuela, um plano muito parecido com o de Hugo Chávez é posto em prática.
Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a defender o aumento no número dos juízes, dos 11 atuais para 21. Atualmente fala sobre uma proposta de alteração dos atuais 11 ministros para 16, o que segundo o presidente “vai depender da ‘temperatura’ da corte” [4]. Na mesma entrevista, Bolsonaro ainda afirmou que “tem mais gente que é simpática à gente”, mas “já temos duas pessoas garantidas lá [Kassio Nunes Marques e André Mendonça]”. Será que os dois excelentíssimos ministros são como os lealistas revolucionários de Hugo Chávez, para quem o direito não possuía qualquer autonomia? O presidente deixa a entender que sim, agora cabe a eles se pronunciarem.
Celso de Mello, que até recentemente era o decano do nosso Supremo Tribunal Federal afirmou que: “A pretensão de Bolsonaro e de seus epígonos, objetivando alterar a composição numérica da Corte Suprema do Brasil, revela que, subjacente a essa modificação, visa-se, na realidade, perversa e inconstitucional finalidade de controlar o STF e de comprometer o grau de plena e necessária independência que os magistrados e os corpos judiciários devem possuir, em favor dos próprios jurisdicionados (seus reais destinatários), no Estado de Direito legitimado pela ordem democrática!”
Levitsky e Zibblat [5] nos mostram que uma vez que os árbitros estejam dominados, os autocratas eleitos podem se voltar para seus oponentes. A maioria das autocracias contemporâneas não eliminou todos os traços de dissensão, como fez Mussolini na Itália fascista ou Fidel Castro na Cuba comunista. Porém, muitos fizeram esforços para garantir que jogadores importantes — qualquer um realmente capaz de prejudicar o governo — fossem marginalizados, obstruídos ou pagos para entregar o jogo. Jogadores importantes podem incluir políticos de oposição, líderes empresariais que financiam a oposição, meios de comunicação importantes ou outras figuras culturais que desfrutem de certo status moral público.
O enfraquecimento e o desvio de finalidade das Cortes Constitucionais é um sintoma para o fim de uma democracia saudável e, no Brasil, esse sintoma está começando a se manifestar. Muitos dos esforços do atual governo para subverter a democracia são “legais“, no sentido de que são aprovados pelo Legislativo ou aceitos pelos tribunais. Eles podem até mesmo ser retratados como esforços para aperfeiçoar a democracia — tornar o Judiciário mais eficiente, combater a corrupção ou limpar o processo eleitoral. Os jornais continuam a ser publicados, mas são comprados ou intimidados e levados a se autocensurar. Os cidadãos continuam a criticar o governo, mas muitas vezes se veem envolvidos em problemas com impostos ou outras questões legais.
Esse processo de extinção da autonomia do Direito, que deixa de ser uma técnica de argumentação racional e democrática para ser simplesmente uma manifestação da vontade de um líder não é algo novo, Thomas Hobbes já havia pensado nisso, bem como Carl Schmitt, jurista do III Reich que metamorfoseou as antigas ideias de Thomas Hobbes em seu decisionismo, que nada mais era do que a regressão da racionalização do direito, para simplesmente virar a materialização da vontade de um líder autoritário e populista, que degenera [6] o direito para se transformar em mera técnica.
Ressalvadas as intensidades e as ideologias por trás do Decisionismo, isto que aconteceu na Alemanha nazista, na Venezuela e na Hungria, agora começa a se manifestar no Brasil.
Com o atual governo e suas ideias decisionistas, talvez nossa bandeira “jamais se torne vermelha”, mas a liberdade política, a liberdade de expressão, a falta de emprego, a fome e todas as demais mazelas e indecências do autoritarismo decisionista talvez sejam iguais às do modelo Venezuelano tão criticado pelo atual governo.
Texto de Francisco Kliemann a Campis
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Fotos: Divulgação / Jefferson Severino / Assessorias de Imprensa / Arquivos Pessoais
Fontes: Assessorias de Imprensa
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Fonte: Consultor Jurídico
[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
[2] Ver mais em: https://oglobo.globo.com/mundo/justica-europeia-considera-ilegal-lei-de-orban-que-fechou-universidade-fundada-por-george-soros-24679269
[3] Ver mais em Levistsky e Ziblatt, 2018, p. 82.
[4] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/10/5043126-bolsonaro-reforca-proposta-de-aumentar-para-16-o-numero-de-ministros-do-stf.html
[5] Ver mais em Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 84.
[6] Ver mais em RUTHERS, Berndt. Entartetes Recht: Rechtslehren und Kronjuristen im Dritten Reich. Tradução livre: Direito Degenerado: Direito de estado e Juristas da câmara do terceiro Reich.